domingo, 4 de dezembro de 2011



Reflexões sobre o marxismo e a questão racial

(1ª parte)

 

I. Racismo: a ideologia do colonialismo

O preconceito contra outros povos e outras culturas é tão antigo quanto a própria humanidade. Os gregos, por exemplo, consideravam bárbaros (ou seja, inferiores) todos aqueles que não pertenciam à sua cultura e nem falavam sua língua. Mais tarde os romanos, então senhores do mundo, consideravam bárbaros aqueles que se encontravam para além das fronteiras do seu Império – sejam eles brancos ou não-brancos. Durante o período feudal o preconceito recaiu sobre os não-cristãos: judeus e muçulmanos particularmente. A cor da pele acabou ganhando maior projeção na distinção entre os povos. Afinal, os povos da África, Ásia e América eram não-brancos e não-cristãos.  Por outro lado, os povos nórdicos – tidos como arianos - foram saindo da lista de povos considerados bárbaros (e inferiores) e assumindo um lugar ao lado daqueles que se consideravam civilizados. Mais tarde eles próprios passaram a se considerar uma fração superior da “raça” branca.
Nesse artigo não trataremos do racismo em geral e sim do que chamaremos de “racismo moderno”. Marx e Engels, no seu famoso Manifesto do Partido Comunista de 1848, falavam da “indústria moderna”, do “Estado moderno” etc. etc. Todos estes nascidos com o desenvolvimento do capitalismo na primeira metade do século XIX. O “racismo moderno” foi, justamente, aquele que se desenvolveu ao lado da expansão mundial do sistema capitalista.
No final do século XIX, a Revolução Francesa pôs abaixo as velhas estruturas econômicas, políticas e sociais feudal-clerical-absolutistas. Com elas pareciam, irremediavelmente, derrotados os preconceitos imperantes durante todo período feudal – entre eles o da existência de uma desigualdade inata entre os homens, determinada por Deus. Os ideais da grande revolução eram liberdade, igualdade e fraternidade. “O homens nasciam livres e iguais” e assim deveriam permanecer, afirmavam os filósofos e políticos revolucionários. Parecia que o tempo do obscurantismo e do preconceito havia desaparecido, pelo menos onde a revolução havia feito o seu trabalho profilático.
Segundo o intelectual comunista Georg Lukács, no seu clássico O Assalto a Razão, “a teoria racista – sob sua forma incipiente e primitiva – foi cientificamente liquidada nos tempos da revolução francesa” e mesmo “durante a primeira metade do século XIX o racismo não chegou a alcançar uma influência ideológica digna de menção”.
Mas a radicalidade que assumiu sua própria revolução acabou assustando a burguesia, que resolveu dar um basta aos abusos igualitaristas. O processo revolucionário conheceu um lento refluxo e a contra-revolução foi se impondo. Primeiro ato da tragédia aconteceu em 1794, com a derrota dos jacobinos, chefiados por Robespierre. O segundo ato em 1799, com o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte. No entanto, ainda sob Napoleão alguns ideais da revolução sobreviveriam na França e este país continuava sendo a vanguarda política da Europa, quando comparado à Rússia czarista, Áustria, Espanha, Portugal e aos pequenos estados que compunham o que hoje conhecemos como Itália e Alemanha.
Em 1814, com a derrota militar de Napoleão para uma coligação arqui-reacionária e a constituição da Santa Aliança, abriu uma nova fase conservadora na Europa e os ideais da revolução de 1789 começaram a perder força. Nem mesmo a retomada da ofensiva revolucionária em 1830 e 1848 conseguiu restituir a aqueles ideais o mesmo esplendor. A própria burguesia européia havia abandonado seu projeto revolucionário e tendia a fazer acordos com as antigas classes dominantes: os latifundiários feudais.
Mas, qual a razão dessas mudanças? È que agora a burguesia tinha diante de si, ameaçador, o proletariado revolucionário. O ano de 1848 foi emblemático nesse sentido. Após a revolução de fevereiro – que foi uma revolução de “todas as classes e de todas as cores” – eclodiu em Paris uma revolução nitidamente operária, que acabou sendo derrotada num banho de sangue poucas vezes visto. Um dos resultados dos conflitos cada vez mais agudos entre as classes e frações de classes foi o golpe de Estado de Louis Bonaparte em 1852 e depois a restauração monárquica – dessa vez a serviço da expansão do capitalismo e do colonialismo francês.
Em 1871, novamente, a capital francesa foi sacudida pelos operários revolucionários que instituíram, pela primeira vez na história, um poder de caráter popular e socialista que ficou conhecido como Comuna de Paris. Esta experiência durou pouco tempo e foi esmagada pela burguesia coligada. Por isso, entre 1848 e 1871, as burguesias dos países capitalistas centrais abandonaram qualquer veleidade revolucionária e progressista.
Acompanhando, e impulsionando, esse processo de direitização das elites européias estava a retomada do projeto colonial, sob novas bases. O capitalismo, precisando de novas fontes de matérias primas e de mercados para seus produtos, voltou-se para os continentes africano e asiático. A própria América Latina não ficou de fora dos seus planos expansionistas. Entre 1861 e 1866 as potências européias, especialmente a França, promoveram uma guerra contra o México e impuseram-lhe um Imperador europeu, Maximiliano I.
Foi nesse momento que começou a ganhar força novamente as idéias racistas. Mas, a ideologia racista da segunda metade do século XIX não poderia ter por base os mesmos elementos da ideologia racista da Idade Média. Era preciso que ele se revestisse de uma roupagem nova, científica, adequada a época de expansão da indústria e da técnica. Segundo Thomas Skidmore, “um tal corpo de pensamento racista sistemático não existia na Europa de 1800. Por volta de 1860, todavia, as teorias racistas tinham obtido o beneplácito da ciência e plena aceitação por parte dos líderes políticos e culturais dos Estados Unidos e da Europa”. 

O Conde de Gobineau: o pai do racismo moderno

Um dos primeiros grandes teóricos racistas do século XIX foi o Conde Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882). Na sua juventude estudou línguas orientais e escreveu vários folhetins que tiveram alguma repercussão popular. Quando Aléxis de Tocqueville foi indicado ministro de Negócios Estrangeiros pelo então presidente Louis Bonaparte, chamou o jovem Gobineau para ser seu secretário particular. Após o golpe de Estado de Louis Bonaparte (1852), ele se projetou na diplomacia, se colocando a serviço dos interesses coloniais franceses.
Em 1855 publicou a primeira parte de sua principal obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, que somente foi concluída em 1858. Nela expõe sua tese sobre a existência de uma superioridade inata das raças brancas e louras (arianas) sobre todas as outras.  Para sua infelicidade, entre 1869 e 1870, foi nomeado representante diplomático no Brasil. Esta foi a experiência mais traumática da sua vida, pois nada mais desagradável para um político e cientista racista que ser obrigado a viver num país onde predominavam amplamente raças consideradas inferiores.  Chegou mesmo a afirmar que o único membro da raça superior que encontrou no Brasil foi Dom Pedro II, que se tornou seu amigo.
As teses de Gobineau tiveram pouca repercussão entre os seus conterrâneos, exceção de um pequeno círculo reacionário ao redor do poder. Numa carta ao seu antigo protetor lamentou que suas idéias tinham maior aceitação nos Estados Unidos que na própria França. Tocqueville respondeu que o seu livro tinha repercussão apenas entre as elites brancas do Sul, onde predominava o trabalho escravo.
Gobineau não se deu por vencido e afirmou: “Tão certo como circula sangue mesclado nas veias da maioria dos cidadãos de um Estado, estes se sentem movidos pela força do número a proclamar como uma verdade vigente para todos o que somente é verdade para eles, a saber: que todos os homens são iguais”. O seu preconceito não era apenas contra as raças não-brancas e sim contra o próprio povo francês.
A teoria racista, justificadora da dominação feudal, se transformaria numa ideologia justificadora da dominação dos países capitalistas centrais sobre os países da África, Ásia e América Latina e também da dominação de uma elite proprietária sobre o conjunto da população trabalhadora.
O “gobinismo”, como uma ideologia ainda permeada por preconceitos feudais (pré-burgueses), não podia ser incorporado na sua integralidade ao arcabouço ideológico da moderna burguesia européia e norte-americana. Um dos seus aspectos mais problemáticos era o seu pessimismo crônico, próprio da pequena nobreza decadente – pessimismo que se refletiu na tese de que “a raça branca original havia desaparecido da face da terra” e que ela estaria agora representada por “bastardos”. Segundo Lukács, a obra de Gobineau “lançou no mundo pela primeira vez um panfleto pseudocientífico realmente eficaz contra a democracia e contra a igualdade, baseada na teoria racista. O livro de Gobineau constituiu, ademais, a primeira tentativa ambiciosa de reconstruir toda a história universal por meio da teoria racista, reduzindo a simples problemas raciais todas as crises da história, todos os conflitos e as diferenças sociais”.
Ratzel: A geografia a serviço do colonialismo
Friedrich Ratzel (1844-1904) foi considerado, por muitos, o pai da geografia moderna. Ele estudou nas melhores universidades alemãs e participou, como oficial, da guerra franco-prussiana - um marco do processo de unificação alemã. Se Gobineau foi o representante um pouco incômodo da burguesia francesa sob Napoleão III, Ratzel era o intelectual orgânico da burguesia pró-imperialista alemã, sob Bismarck. Este último foi o principal comandante do processo de unificação e construtor de um Estado nacional onipotente. A Alemanha havia chegado atrasada ao banquete das nações capitalistas e coloniais, mas em pouco tempo suplantou econômica e militarmente a França – considerada então a segunda potência européia. O militarismo foi um dos componentes principais desse novo Estado emergente.
Ratzel dividiu os povos em dois grandes grupos: “naturais” e “civilizados”. Os primeiros eram dominados pela natureza e o segundo a dominavam. Ele foi um dos primeiros a desenvolver um conceito que seria tão caro aos nazistas alemães no século XX, o de “espaço vital”. A história humana seria a história da luta perpétua dos povos e grupos sociais pelo seu espaço vital – guerras defensivas ou para conquista de novos territórios. Por isso, as fronteiras nacionais eram sempre relativas e os povos que não conseguissem defendê-las deveriam se submeter e concordar com a redução do seu próprio “espaço vital”. Esta seria uma espécie de “lei de seleção natural” que regeria a história e as relações entre povos e Estados.
A guerra, assim, seria um estado natural das sociedades em expansão. A naturalização da violência e das guerras de conquistas seria bastante funcionais para o imperialismo alemão e demais imperialismos. A expansão das nações civilizadas sobre os “povos naturais” teria algo de positivo, pois imporia a eles elementos de progresso. Aos povos naturais conquistados – preguiçosos por natureza – deveria ser imposto um trabalho compulsório – entenda-se servidão. Assim, os continentes africano e asiático seriam áreas de expansão para os povos civilizados da Europa Ocidental.
As teorias de Ratzel eram um passo a frente em relação às teorias de Gobineau, pois não punham o centro de suas explicação da história nas raças humanas – pois nenhuma seria biologicamente superior à outra. A superioridade das nações européias estaria vinculada à sua própria história e, especialmente, a sua localização geográfica privilegiada. O resultado, no entanto, era o mesmo: justificava-se a dominação dos países coloniais e de seus povos, que se compõe de uma maioria não-branca. O determinismo racial deu lugar ao determinismo geográfico.
Nesse período, entre 1884 e 1885, ocorreu a Conferência Internacional de Berlin, da qual participaram cientistas e diplomatas das potências capitalistas européias - como a Alemanha, Inglaterra, França, Bélgica - e dos Estados Unidos. A presidência do conclave coube ao próprio chanceler alemão, Oto Von Bismarck. Atrás da mesa diretora dos trabalhos se estendia um enorme mapa do continente africano, que eles pretendiam repartir entre eles. O atual mapa geográfico da África, que não respeita a divisão tradicional que havia entre os povos e etnias africanos, é um dos resultados daquela reunião.
Cesare Lombroso: o crime está na cara.
A última tentativa expressiva de dar status científico ao racismo moderno foi a teoria do criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909). Nasceu em Verona e exerceu o cargo professor de psiquiatria e medicina forense. Seu grande prestígio internacional foi conquistado graças a sua tentativa de demonstrar a relação existente entre as características físicas dos indivíduos e sua capacidade mental e propensões morais. Algumas décadas antes já haviam sido criados novos ramos da “ciência racista”: como a antropometria e a frenologia. A primeira afirmava que era possível prever a potencialidade de uma raça através da medição do diâmetro da cabeça dos indivíduos, a segunda estudava a conformação dos crânios. No início do século XX ainda eram comuns exposições de cérebros humanos nos museus do chamado mundo civilizado. Lombroso, na mesma linha, fundou um novo ramo daquela “ciência”: a antropologia criminal e escreveu O homem delinqüente (1876) e O crime, causas e remédios (1899), entre outros títulos.
Quando diretor do manicômio de Pádua, entre 1871 a 1876, chegou à conclusão de que se poderia descobrir quem tinha propensão para o crime observando o formato do crânio, da mandíbula, assimetrias na face e outras deformações, segundo seus padrões estéticos. A “teoria” de Lombroso era anticientífica e se assentava apenas em preconceitos sociais. Segundo Lilia Schwarcs, ele “costumava visitar escolas e observando crianças pequenas descobria, por meio de estigmas, os futuros delinqüentes”.  Os sinais físicos desses criminosos em potencial eram: mandíbulas grandes, ossos da face salientes, pele escura, orelha chapadas, braços compridos, rugas precoces, testa pequena e estreita. Outras marcas, não físicas, seriam a epilepsia, o homo-sexualismo e a prática de tatuagem.
Apesar de inconsistentes, suas idéias tiveram ampla repercussão no mundo, especialmente entre policiais, juizes e juristas. O líder comunista italiano, Antônio Gramsci, fez uma crítica aos métodos da antropologia criminal lombrosiana. Afirmou ele: "este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer-lhe a biografia patológica, muito freqüentemente partindo de motivos não comprovados ou interpretáveis de outro modo. Para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico”.
A homens como Alfred Rosemberg, caberia a macabra missão de fazer a fusão entre o racismo de Gobineau, o determinismo geográfico de Ratzel e as teses de Lombroso para construir o que seria a mais racista e cruel ideologia do século XX: o nazismo.

II. Racismo e Ciência no Brasil

As ideais pseudocientífica predominantes na Europa na segunda metade do século XIX influenciaram fortemente a intelectualidade brasileira até a década de 1930. As ideologias racistas, trans-vestidas de ciência, serviram para justificar as restrições à cidadania da grande maioria do nosso povo, que era composta de pessoas não-brancas, e buscaram transformar aquilo que era uma conseqüência nefasta do nosso processo de desenvolvimento histórico-social em coisa natural. Naturalizavam assim a nossa miséria, jogando a culpa nas costas da natureza e do próprio povo, que seria composto por raças e sub-raças inferiores. A igualdade entre os homens, inclusive a formal, passou a ser considerada uma utopia – um sonho irrealizável.

Nina Rodrigues: o negro como marginal

O primeiro grande cientista brasileiro a incorporar as teses racistas modernas foi Nina Rodrigues (1862-1906). Ainda em 1888, ano da abolição da escravatura, escreveu: “A igualdade é falsa, a igualdade só existe nas mãos dos juristas”.  Poucos anos depois, em 1894, publicou um ensaio sobre a relação entre as raças humanas e o Código Penal, no qual defendeu a tese de que deveriam existir códigos penais diferentes para raças diferentes. No Brasil, por exemplo, o estatuto jurídico do negro devia ser o mesmo de uma criança. Esta teoria era particularmente nefasta, pois aparecia no momento que os negros recém libertados lutavam para ocupar um lugar na sociedade de classes como cidadãos portadores de plenos direitos.
Nina Rodrigues era professor de medicina legal na Bahia e foi um dos introdutores da antropologia criminal, da antropometria e da frenologia no país; ou seja, introduziu aqui o que existia de pior na Europa e Estados Unidos. Em 1899 publicou “Mestiçagem, Degenerescência e Crime”, procurando provar suas teses sobre a degenerescência e tendências ao crime dos negros e mestiços. Os demais títulos publicados também não deixam dúvidas sobre seus objetivos: “Antropologia patológica: os mestiços”, “Degenerescência física e mental entre os mestiços nas terras quentes”. Para ele o negro e os mestiços se constituíam em chagas da nossa nacionalidade.
Mas, sua grande obra foi Os Africanos no Brasil, coletânea de textos escritos entre 1890 e 1905 – publicada postumamente. Estes foram os primeiros grandes estudos sociológicos sobre a presença negra na cultura brasileira e, contraditoriamente, foram os mais importantes trabalhos baseados no chamado racismo científico publicados no final do século XIX e início do século XX. Logo na introdução procurou desfazer a falsa concepção existente sobre os negros brasileiros construída pelo movimento abolicionista. Escreveu ele: “Para dar-lhe (a escravidão) esta feição impressionante foi necessário ou conveniente emprestar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos (...) O sentimento nobilíssimo de simpatia e piedade, ampliado nas proporções duma avalanche enorme na sugestão coletiva de todo um povo, ao negro havia conferido (...) qualidades, sentimentos, dotes morais ou idéias que ele não tinha e que não podia ter; e naquela emergência não havia que apelar de tal sentença, pois a exaltação sentimental não dava tempo nem calma para reflexões e raciocínios”.
Para ele seria preciso separar a simpatia pelos negros que haviam sido escravizados e a ciência: “Os destinos de um povo não podem estar à mercê das simpatias ou dos ódios de uma geração. A ciência, que não conhece estes sentimentos, está no seu pleno direito exercendo livremente a crítica e a estendendo com a mesma imparcialidade à todos os elemento étnicos de um povo (...) Se conhecemos homens negros ou de cor de indubitável merecimento e credores de estima e respeito, na há de obstar esse fato o reconhecimento dessa verdade – que até hoje não puderam os negros constituir em povos civilizados.” 
No mesmo sentido escreveu: “A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que seja as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros de seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”.  Por isso mesmo enaltecia aqueles que destruíram Palmares, pois haviam colocado um fim na “maior das ameaças à civilização do futuro povo brasileiro: esse novo Haiti, refratário ao progresso e inacessível a civilização, que Palmares vitorioso teria plantado no coração do Brasil”.
Segundo o renomado cientista baiano, a inferioridade do negro – e das raças não-brancas – seria “um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e seções”. No Brasil os arianos deveriam cumprir a missão de não permitir que as massas de negros e mestiços possam interferir nos destinos do país. “A civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria da raça branca a quem ficou o encargo de defende-la (...) (dos) atos anti-sociais das raças inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam, ao contrário, manifestações do conflito, da luta pela existência entre a civilização superior da raça branca e os esboços de civilização das raças conquistadas ou submetidas”. Talvez nunca antes alguém tenha defendido com tanta ênfase a repressão aberta e o controle social contra as camadas populares, representadas pelas populações não-brancas. A grande ironia era que o fenótipo de Nina Rodrigues não conseguia esconder sua descendência africana, portanto sua condição de mestiço.
As idéias de Nina Rodrigues tiveram grande aceitação social e influenciaram fortemente toda uma geração de cientistas e intelectuais brasileiros, inclusive escritores progressistas como Euclides da Cunha. A sua monumental obra Os Sertões está impregnada pelo espírito da época. Somente a capacidade daquele grande jornalista brasileiro pode, em contato com a saga dos sertanejos de Antônio Conselheiro, extrair conclusões que contradiziam seus pressupostos teóricos e ideológicos. Essa contradição está exposta claramente em uma de suas conclusões: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. 

Oliveira Vianna: O racismo decadente

Oliveira Vianna (1883-1951) foi professor da faculdade de direito do Rio de Janeiro e em 1920 iniciou a publicação do seu primeiro e mais importante trabalho Populações Meridionais do Brasil. Logo em seguida elaborou o ensaio de apresentação do censo oficial de 1920, que foi intitulado Evolução do Povo Brasileiro. Estas duas obras o projetaram no cenário intelectual brasileiro. Após a Revolução de 1930 foi indicado para consultoria jurídica do Ministério do Trabalho e ajudou na elaboração da nova legislação sindical e trabalhista.
Ele foi o último grande expoente do racismo pseudocientífico brasileiro. No seu primeiro livro não deixou dúvidas sobre quais eram suas referências teóricas mais importantes: “o grande Ratzel” e “os gênios possantes e fecundos” dos Gobineau e Lapouge (ambos racistas). Vianna foi, essencialmente, um apologista das oligarquias rurais brasileiras, procurando reconstruir idealmente como teriam sido os primeiros colonizadores portugueses. Entre outras coisas, escreveu: “Pela elevação dos sentimentos, pela hombridade, pela altivez, pela dignidade, mesmo pelo fausto e fortuna que ostentam, esses aristocratas, paulistas ou pernambucanos, mostram-se muito superiores à nobreza da própria metrópole. Não são eles apenas homens de cabedal (...) são também espíritos do melhor quilate intelectual e da melhor cultura. Ninguém excede nos primores do bem falar e do bem escrever. Sente-se na sua linguagem ainda aquele raro sabor de vernaculidade, que na Península parecia já haver se perdido. Pois é aqui, na colônia (...) que os filhos de Lisboa vêm aprender aqueles bons termos, que já lhes falavam, e com os quais se fazem, no trato social, pedidos e distintos”. Em Evolução do Povo Brasileiro lançou a tese de que os bandeirantes paulistas eram perfeitos arianos: altos, fortes, loiros e de olhos claros. Estas descrições sobre o passado das elites tradicionais brasileiras não passavam de puras fantasias reacionárias.
Segundo ele, o país seria o resultado da vontade e da energia das elites brancas, racialmente superiores. Os negros e índios, por outro lado, não haviam dado “nenhum elemento de valor” à nossa formação histórica e cultural. Uns e outros se tornaram “massa passiva e improgressiva” sobre a qual trabalhou “nem sempre com êxito, a ação modeladora da raça branca”. A missão de conduzir o Brasil rumo à civilização caberia apenas “aos arianos puros, com o concurso dos mestiços superiores e já arianizados”, pois somente eles que, “de posse dos aparelhos de disciplina e educação”, poderiam dominar “essa turba uniforme e pululante de mestiços, mantendo-a, pela compressão social e jurídica, dentro das normas da moral ariana”.
Assim a apologia da raça ariana foi acompanhada, naturalmente, pelo desprezo quase genocida pelas camadas populares compostas por não-brancos. Não teve vergonha de afirmar que “os preconceitos de cor e sangue que reinavam tão soberanamente na sociedade do I, II e II séculos, tiveram uma função verdadeiramente providencial. São admiráveis aparelhos seletivos que impediram a ascensão até as classes dirigentes desses mestiços inferiores, que formigavam nas subcamadas da população dos latifundiários”. Nos, assim, teríamos escapado da sina de nos transformarmos num grande Haiti. Para ele os negros possuíam “fisionomia repulsiva, fácies troglodítica” e “catadura simiesca”. Novamente temos aqui uma trágica ironia da ciência racista no Brasil. Oliveira Vianna, tal como Nina Rodrigues, era descendente de africanos, um típico mestiço brasileiro.
Oliveira Vianna não deixa de ser uma figura anacrônica: Era o ideólogo do racismo, quando ele já começava a ser questionado nos países capitalistas centrais e quando já se encaminhava para publicação o livro Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freire. Como afirmou Dante Moreira Leite, “a obra de Oliveira Vianna não resiste a qualquer crítica, por mais benevolente que o leitor procure ser”, pois ele “não tinha dotes de observador ou de teórico. O que nele parece teoria é imaginação gratuita, grosseira deformação dos fatos e teorias alheias”.
O seu reacionarismo pode ser medido por sua posição em relação à abolição da escravatura. Ao contrário de Nina Rodrigues, que a considerava algo positivo, Vianna descreveu-a como um acontecimento essencialmente negativo. A Lei Áurea teria concorrido para “retardar a eliminação” do negro puro, pois a escravidão teria feito desaparecer mais rapidamente”. Embora, contraditoriamente, ele houvesse afirmado: “E verdade não havia nenhuma razão interna que nos levasse imperiosamente à abolição (...) E o Estado de degradação em que caíram depois da abolição, e em que atualmente vivem, mostra que o regime da escravidão não era tão bárbaro e desumano como fizeram crer o romantismo filantrópico dos abolicionistas”. Quer porque eliminasse a população negra quer porque impedisse que ela caísse na degradação, a escravidão parecia ser alguma coisa fundamentalmente positiva.

Miscigenação e racismo: o branqueamento

O racismo brasileiro sempre foi eclético. Existiam duas grandes correntes, que muitas vezes se intercruzavam. A primeira era racista-segregacionista, que condenava toda e qualquer idéia de miscigenação racial. Essa, em geral, conduzia a uma visão pessimista sobre o futuro do Brasil. A segunda apostava suas fichas no processo de miscigenação, visando solucionar o chamado problema negro. Ela, pelo contrário, tendia ser mais otimista em relação às possibilidades futuras do país, enquanto integrante da civilização ocidental e cristã. O seu otimismo residia na esperança de que a miscigenação não levaria necessariamente à constituição de um povo degenerado (de pele escura) e sim de um povo superior, ao moldes europeus. Esta vertente do racismo foi amplamente dominante nos trinta primeiros anos do século XX.
João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional e representante brasileiro no I Congresso Universal de Raças, realizado na cidade de Londres em 1911, expressou de maneira exemplar esse segundo tipo de racismo – um racismo verdadeiramente à brasileira. Na sua famosa conferência afirmou que “já se viram filhos de métis (mestiços) apresentarem, na terceira geração todos os caracteres físicos da raça branca” e por isso seria “lógico esperar que no curso de mais um século tenham desaparecido do Brasil. Isso coincidirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio”. Dois anos depois um conceituado político e escritor paulista chamado Martins Francisco Ribeiro de Andrade escreveu: “Em São Paulo, por exemplo, graças ao clima e a uma série de fatores antropológicos, o sangue negro desaparecerá na quinta geração”.
Imediatamente se instaurou uma polêmica entre políticos, cientistas e empresários brasileiros. Muitos consideraram que a previsão do representante brasileiro era muito pessimista. Cem anos era muito tempo para a eliminação completa dos negros. Outros achavam a previsão demasiadamente otimista. Sílvio Romero apostou que levaria ainda “uns seis ou oito (séculos), se não mais” para extinção do elemento negro na sociedade brasileira. No entanto, para todos, o desaparecimento dos negros seria apenas uma questão de tempo. O branqueamento era um processo irreversível – caso se impedisse a entrada de mais negros no país e continuassem sendo mantidos os altos índices de mortalidade desse segmento da população.
Um visitante ilustre, o ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, que esteve entre nós entre 1913-1914, escreveu: No Brasil “o ideal principal é o do desaparecimento da questão negra pelo desaparecimento do próprio negro, gradualmente absorvido pela raça branca (...) A enorme imigração européia tende, década a década, a tornar o sangue preto um elemento insignificante no sangue de toda a nação. Os brasileiros do futuro serão, no sangue, mais europeus ainda do que o foram no passado”.  Buscando não ferir a suscetibilidade das elites brasileiras, ele reprovou a idéia de que o brasileiro fosse um povo de negros e mestiços, pois ele na verdade seria “um povo branco, pertencente à raça do mediterrâneo (...) às grandes e velhas raças civilizadas dos espanhóis e italianos”. Talvez aqui ele cometesse um erro bastante comum entre os presidentes norte-americanos, confundir o Brasil com a Argentina.
Mas, se errou quanto ao país acertou em cheio ao definir a ideologia racial dominante por aqui. Notou que esse processo era “aplaudido calorosamente pelos mais autorizados estadistas do país”. Em conversa com um deles ouviu uma crítica a política segregacionista norte-americana: “Vocês dos Estados Unidos conservam os negros como elemento inteiramente separado (...) Permanecerão como ameaça à sua civilização, ameaça permanente e talvez, depois de mais algum tempo, crescente. Entre nós a questão tende a desaparecer porque os próprios negros tendem a desaparecer e ser absorvidos (...) Não tenho por perfeita a nossa solução, mas julgo-a melhor que a sua”.
Outro observador norte-americano, crítico da segregação racial existente em seu país, escreveu, comovido, sobre a original experiência brasileira: “Uma honesta tentativa está sendo feita aqui para eliminar os pretos e pardos pela infusão do sangue branco (...). Este país revelará um dia ao mundo inteiro o único método existente de interpenetração racial, o único que evitará guerras raciais e derramamento de sangue”.
Um dos personagens do romance A Esfinge, de Afrânio Peixoto, publicado no mesmo ano do I Congresso Universal Sobre as Raças, afirmava: “Em trezentos anos mais, seremos todos brancos; não sei que será dos Estados Unidos, se a intolerância saxônia deixar crescer, isolado, o núcleo compacto de seus doze milhões de negros”. Para esse mesmo personagem o futuro do Brasil era radioso, pois “pertenceria a um povo sentimental e inteligente, digno dessa terra e do tempo em que vive”. Essa qualidade moral seria fruto da miscigenação, mas esse povo de grandes qualidades deveria, necessariamente, ser branco. 
Existiam também ideólogos do branqueamento que apostavam suas fichas na imigração européia e viam com desconfiança a miscigenação. Azevedo Amaral – ideólogo do Estado Novo – era um deles. Mesmo após 1937 escreveria: “A entrada de correntes imigratórias de origem européia é realmente uma das questões mais importantes na fase de evolução que atravessamos e não há exagero afirmar-se que o número de imigrantes da raça branca que assimilarmos nos próximos decênios depende literalmente o futuro da nacionalidade (...) É claro que somente se tornará possível assegurar a vitória étnica dos elementos representativos das raças e culturas da Europa se reforçarmos o fluxo continuo de novos contingentes brancos”. Isso representaria um “reforçamento de valores étnicos superiores de cujo predomínio dependem as futuras formas estruturais da civilização brasileira”.
 No entanto, já no início do século XX, existiram intelectuais lúcidos que submeteram o racismo de nossas elites a uma crítica mordaz, entre eles se encontrava Manuel Bonfim que escreveu: “Tal teoria (racista) não passa de um sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes”. Afirmações como esta explicam porque um pensador tão avançado tenha sido marginalizado pelas elites políticas e intelectuais da época, que desposavam teorias anticientificas assentadas em preconceitos sociais e de classe.
O crescimento de uma consciência antifascista na segunda metade da década de 1930 e a derrota das potências do eixo em 1945 – e a conseqüente expansão dos ideais democráticos e socialistas - não acabaram definitivamente com o racismo, mas puseram uma pá de cal na tentativa de dar-lhe uma base cientifica.
Historiador, doutorando em Ciências Sociais/Unicamp, membro do Comitê Central do PC do Brasil, do conselho de redação das revistas Debate Sindical e Princípios, do conselho editorial da revista Crítica Marxista e diretor do Instituto Maurício Grabóis (IMG)

Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/051/51buonicore.htm
Postado por  Shirley Oliveira dos Anjos Samora

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